Lei permite compra de vacina por empresas mas não fiscaliza
A investigação sobre vacinação clandestina em uma empresa de transporte de Minas Gerais reacendeu o debate sobre a compra de imunizantes contra a covid-19 pela iniciativa privada. A Lei 14.125, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro há duas semanas, abriu a possibilidade de aquisição por empresas, mas a dificuldade de fiscalização da aplicação das doses compradas é um desafio, afirma o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado.
Segundo a nova norma, é possível comprar vacinas com autorização para uso emergencial ou registro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Empresários, conforme a regra, têm direito de comprar o imunizante, desde que doem 100% aos SUS até que seja concluída a vacinação dos grupos prioritários, como idosos e profissionais de saúde. Depois disso, a empresa será obrigada a doar 50%. Mas nesta quinta-feira, 25, uma liminar (decisão provisória) da Justiça Federal suspendeu a obrigatoriedade do repasse do produto à rede pública.
“O que é mais complicado é que não existe estrutura para esse tipo de fiscalização”, diz Dourado. “Quem é que vai nas empresas olhar se o cara está vacinando, se doou a quantidade certa? É uma lei que vai muito na confiança de que as empresas iriam alimentar os bancos de dados. Não é algo simples de viabilizar. A vigilância iria conferir os lotes de vacina, visitar as empresas? A lei tentou disciplinar, mas mais como efeito simbólico”, acrescenta.
“(Na nova lei) Não há nenhum tipo de sanção pelo descumprimento”, diz Dourado. Segundo o Ministério Público Federal de Minas (MPF-MG), além de violação à Lei 14.125, os responsáveis pela vacinação clandestina podem responder por importação ilegal de medicamentos. O Código Penal prevê pena para o crime de descaminho, quando há importação clandestina de mercadoria que dependa de registro, análise ou autorização de órgão público competente.
Nestes casos, a pena prevista é de prisão de um a quatro anos. Segundo a reportagem da revista piauí, que revelou o esquema de imunização irregular, o grupo teria comprado doses da vacina da Pfizer – a farmacêutica americana nega.
Nesta quinta-feira, os empresários Luciano Hang, dono da varejista Havan, e Carlos Wizard, da holding Sforza, anunciaram a intenção de doar 10 milhões de doses da vacina contra a covid-19 para o SUS. Por trás do gesto, porém, está o desejo de poder comprar imunizantes para aplicar em seus funcionários, sem seguir a ordem de priorização estipulada no Plano Nacional de Imunização (PNI).
“Os empresários estão fazendo uma doação de 10 milhões de doses da vacina para a população. Então, para que isso aconteça, precisamos sensibilizar os congressistas, as autoridades, para que haja uma flexibilização na legislação, que nos permita fazer essa doação a favor do Brasil”, afirmou Wizard, após reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes.
De acordo com Dourado, a escassez de doses no mercado internacional é, na verdade, o maior entrave para que avancem os negócios de empresários brasileiros. “As farmacêuticas não têm vacina para entregar”, afirma. Laboratórios estrangeiros, como a Pfizer e a britânica AstraZeneca, já disseram publicamente que vão privilegiar contratos com governos, e não com empresas.
Embora a lei autorize a compra particular de vacinas com uso emergencial, Dourado lembra que a Anvisa dá esse tipo de autorização excepcional vinculada a uma situação específica. “A Coronavac (desenvolvida pelo Instituto Butantan e o laboratório chinês Sinovac), por exemplo, é excepcional, mas só pode ser aplicada pelo PNI”, destaca. “Não acredito que Anvisa vá ceder.”